As motocicletas seguem avançando como principal meio de deslocamento para milhões de brasileiros, inclusive entre aqueles que reconhecem claramente o alto risco de acidentes. Essa contradição entre a consciência do perigo e a permanência no uso, é o foco do estudo “Motivações e racionalidades pela escolha da motocicleta como meio de transporte individual na Região Metropolitana do Rio de Janeiro”, apresentado pela professora Marina Baltar, do Programa de Engenharia de Transportes (PET) da Coppe/UFRJ, durante o Rio de Transportes 2025.
Realizada com 2.616 motociclistas, a pesquisa analisa a percepção de risco e as condições urbanas que moldam a decisão de permanecer sobre duas rodas. Os resultados indicam que, para a maioria dos usuários, a motocicleta não representa uma escolha por preferência, mas uma necessidade imposta por falhas estruturais do transporte público e do planejamento urbano.
O estudo, desenvolvido no Laboratório de Otimização e Sistemas de Informações Geográficas (OPTGIS) do PET, insere-se em um contexto nacional de crescimento acelerado do uso de motocicletas. Entre 2023 e 2024, a frota nacional cresceu 18%, alcançando 28 milhões de motos, e um em cada quatro domicílios brasileiros já possui uma motocicleta. Em 2023, os motociclistas responderam por 38,6% das mortes no trânsito, enquanto, em 2024, o Sistema Único de Saúde (SUS) gastou R$ 233,3 milhões apenas com internações decorrentes de acidentes envolvendo esse modal. Esses números reforçam que a expansão da motocicleta está diretamente associada a desigualdades históricas, precarização do trabalho e lacunas persistentes nos sistemas de mobilidade urbana.
A principal conclusão do estudo é contundente: 99,92% dos motociclistas sabem que pilotar é perigoso, mas continuam utilizando a moto como principal meio de deslocamento. Segundo Marina Baltar, isso ocorre porque a motocicleta oferece rapidez e previsibilidade, fundamentais para quem precisa se deslocar por múltiplos pontos da cidade, enquanto o transporte coletivo é percebido como lento, caro, pouco confiável e mal integrado. Trajetos longos e condições urbanas deficientes acabam empurrando os usuários para soluções individuais, ainda que arriscadas.
Durante a apresentação, a frase que sintetizou o diagnóstico ganhou destaque: “A motocicleta é uma solução individual diante de uma falha coletiva.” Embora 98,29% dos
entrevistados tenham acesso ao transporte público, a maioria considera que ele não compete em tempo, conforto ou eficiência, transformando a moto em uma ferramenta de sobrevivência urbana, especialmente nas áreas periféricas.
O estudo também evidencia que o problema não é individual, mas estrutural. Especialistas e gestores presentes no evento reforçaram que os motociclistas não escolhem o risco, são levados a ele. Para o presidente do Detro-RJ, Rafael Salgado, “ninguém acorda querendo colocar a própria vida em risco; o tempo obriga as pessoas”. A pesquisa confirma essa visão ao mostrar que a motocicleta é, simultaneamente, o meio mais rápido, mais barato e mais previsível para quem enfrenta empregos precários e horários instáveis, resultando em uma vulnerabilidade coletiva que se reflete nas estatísticas de mortalidade e nos custos sociais.
Diante desse cenário, o estudo aponta que não haverá redução sustentável dos acidentes enquanto a motocicleta continuar sendo, na prática, a alternativa mais eficiente. Campanhas educativas e fiscalização isoladas são insuficientes. Entre as medidas estruturais defendidas estão a criação de corredores exclusivos de ônibus, a integração metropolitana entre sistemas municipais e intermunicipais, subsídios tarifários alinhados à qualidade do serviço, o planejamento urbano orientado ao transporte coletivo e uma infraestrutura viária que considere a segurança de todos os modais.
O coordenador da pesquisa e do OPTGIS, professor Glaydston Ribeiro, destaca que os dados oferecem subsídios objetivos para políticas públicas mais eficazes. Segundo ele, os resultados demonstram que é necessário transformar as condições urbanas que moldam o comportamento dos usuários, e não apenas tentar mudar atitudes individuais. O estudo revela um país em que os motociclistas conhecem os riscos, mas não dispõem de alternativas reais, fazendo da moto, ao mesmo tempo, solução e ameaça. Ao explicitar esse paradoxo e suas causas profundas, a pesquisa da Coppe se consolida como referência para gestores públicos, planejadores urbanos e para a sociedade na construção de uma mobilidade mais segura, acessível e eficiente.
Fonte: COPPE UFRJ